Uma das coisas que trabalhei muito no processo de co-dependência, mas que ainda sinto que tenho coisas pra trabalhar é a raiva. Ela aparece no processo porque engolimos sapos e mais sapos em nome dessa coisa amalucada que chamamos amor. E eu, como tantas outras, guardei raiva demais dentro de mim.
Eu me lembro de um natal. Estava calor. Sinto a temperatura no corpo ainda hoje. Eu tinha uns seis ou sete anos de idade e a mini árvore brilhante, cheia de bolas de vidro estava bem em cima da televisão de tubo da casa da minha avó. Eu não me lembro o que aconteceu aquele dia, eu eu olhava para a bolinha vermelha e a única coisa que eu pensava era em apertá-la, apertá-la até estraçalhar aquela coisa.
Lembro da sensação. Ensaiei algumas vezes, me aproximava da árvore e saia de perto. Não queria que ninguém me visse fazendo aquilo, como se sentir raiva fosse algo terrível para mostrar para as pessoas. Em determinado momento, quando todos se distraíram, eu peguei a bolinha e foi isso mesmo que eu fiz.
Apertei, apertei, apertei. Sentia um medo, uma raiva, um ódio que estavam profundamente arraigados no coração. Apertei com força até que ela estourou em mil pedaços sujando e machucando as minhas mãos. Eu via o sangue e sentia certo prazer. Eu era, naquele momento, a menininha do filme de terror.
E por falar em filme de terror, me lembro do único que assisti na vida. Uma família estava andando em uma estrada, de carro. Eram os pais e três filhos, duas meninas e um menino. A menina mais velha estava sentada no meio dos irmãos e adormeceu e, para brincar, os dois irmãos no amarraram seus cadarços, pra ela não conseguir sair do carro quando chegassem ao destino. No meio da estrada o carro começa a pegar fogo. O pai encosta o carro rapidamente e pede que os filhos saiam, mas a menina não consegue porque está com os sapatos amarrados. Ela morre e volta para torturar a família que a matou.
Eu lembro deste filme, que eu nem sei o nome, com riqueza de detalhes. Eu me identificava tanto com aquela menina, eu sabia o ódio que ela sentia daquela família, daqueles irmãos, eu sabia do que ela estava falando. Não, eles não eram terríveis e nem mataram, mas eu não conseguia ser eu mesma e me expressar e isso me causava uma raiva terrível.
A melhor maneira de sair disso é se amar e, claro, socar alguns travesseios no caminho. A co-dependencia pode nos dar uma sensação de raiva do mundo, sermos aquelas pessoas sempre mal humoradas que exigem direitos que nem seriam tão importantes assim. Eu tenho uma coisa com o trânsito (já pensei em vender meu carro e andar só de Uber mesmo) ou com lentidão das pessoas. Perceba onde está a sua raiva e entre em contato com ela.
Não é fácil. Não é de primeira que a gente consegue se livrar disso, mas isso pode ser trabalhado até que só aparece a raiva real, de coisas reais. Claro que algumas coisas sempre vão nos fazer mais mal, mas geralmente manter a raiva dentro dos limites do normal é importante. E sim, pode sentir raiva, não tem problemas não. Raiva é perfeitamente saudável e é a maneira da nossa mente nos dizer que tem algo de errado. Respeite a sua raiva e use-a a seu favor.